Anos 50

           



Desde o pós-guerra...
o carro de quatro gerações de “Marias”

Uma coisa é a importância que se dá a um objecto, herdado, pelo valor material que ele possa ter. Outra coisa é a importância e sentido de um objecto, herdado, “sem valor” mas cheio de valores simbólicos e não materiais.
É esse o significado, para mim, do Champion, que tenho tentado preservar, ao longo dos anos e é esse significado, o dos valores familiares, que gostava que os meus netos não esquecessem.

Independentemente desse significado, tão especial, o Champion não é senão um dos variadíssimos automóveis que passaram pela nossa família e que nos foram marcando, a cada um de nós, das mais variadas formas, seguramente diferentes. Uns exerceram, na época, a sua função prática e utilitária e outros não passaram de verdadeiros caprichos. Alguns houve que tiveram um efeito, inexplicavelmente, mágico e emocional e por isso se mantiveram ao longo dos anos, como se fizessem parte da nossa família. É exactamente esse o caso do Champion. Serviu (e bem) a sua função inicial e depois foi ficando...

Tornei-me menina, mulher e avó sempre com o Champion por perto. Ele é adquirido pelo meu pai, oferecido à minha mãe e passa, por desejo dela, para mim. No meu imaginário, este carro é um elo de união, porque continuo a partilhar esta cumplicidade com a minha filha (Maria) e também já está a minha neta (Lara Maria) a fazer parte integrante desta cadeia, sobretudo para que se divirta muito. Ficará, assim, na nossa história de familia, como o automóvel das “Marias”- um documento de quatro gerações.

Será que, de facto, esta história vai continuar?

Por mim, sou franca, dá-me prazer pensar que um carrinho como o Champion, no fundo, tem sido um excelente “veículo” de referências culturais e transmissor de alguns valores familiares: o prazer do meu pai quando ofereceu o Champion à minha mãe (Maria Alcina); o gosto dela em manter uma recordação e passá-la para mim como um testemunho de momentos felizes, que também fizeram parte da minha infância; as “surpresas” e os mimos à volta deste automóvel, que ao longo da vida me têm gratificado; os amigos que já lhe deram guarida nas suas garagens; o empenhamento do clã familiar para o preservar condignamente, são, quanto a mim, uma prova irrefutável
Por outro lado, quando revejo o espólio resultante dos automóveis de família, em particular a pasta de arquivo “Champion”, encontro uma série de elementos, bem curiosos, que retratam muito bem a forma como se vivia nos anos cinquenta, tais como fotos da época, documentos de compra, seguro automóvel, troca de correspondência, facturas das reparações e memórias de viagens.
É divertidíssimo comparar, por exemplo, o valor que paguei na oficina, por uma das últimas manutenções do Champion, com o valor que a minha mãe gastou na sua primeira grande revisão em Julho de 1954. Nesse ano, foi rectificada a cambota, desmontada a bomba de gasolina, reparado o radiador, substituidos cavilhões e rolamentos de manga de eixo, borrachas de travão, segmentos, cavilhas de piston e discos de embraiagem. O conjunto de peças mais caro foram três rolamentos de cambota que custaram duzentos e onze escudos. O Champion saiu da oficina, dessa vez, com 11 litros de gasolina, com mistura (óleo), que custaram quatro escudos e sessenta centavos cada litro! A factura totalizou três contos e seiscentos...(18 euros!!). Em Dezembro, desse mesmo ano, avariou-se o conta quilómetros e a reparação custou cinquenta escudos. Também nessa altura, o óculo da capota estava danificado e havia que prepará-lo para as chuvas e cheias que se adivinhavam nesse inverno e por isso foi substituido por um novo que custou cento e cinquenta escudos.
Assim, sem “meter água” lá andou, nesse inverno, o Champion nas habituais cheias do Tejo. Conta o meu irmão que, em miúdo, vira algumas vezes o pai transformá-lo numa espécie de carro “anfíbio”. Bastava improvisar uma ligação de um tubo de borracha, de cerca de um metro, ao tubo de escape e prendê-lo com uma corda a uma abraçadeira, em cabedal, existente na traseira e que tem por finalidade segurar a capota quando enrolada. Lá se aguentava o Champion, devagarinho, num passeio, certamente divertido, pelas ruas cobertas de água da vila, ribeirinha, de Alhandra.

E, toda esta mania de família para manter a memória de um carrinho de 1951, que é um «coupé» - limousine, de dois lugares, de cerca de três metros de comprido e de concepção extremamente simples, direi até “minimalista”. A frente e a traseira são simétricas porque, sendo um carro do pós-guerra, desta forma, os custos de produção eram mais baixos e a substituição de peças estava facilitada.
« Depois da segunda guerra mundial, na Europa, surgiram muitos fabricantes, de “microcarros”. O conceito de um carro minusculo e simples deu asas à imaginação de muitos construtores mas nem todos tiveram aceitação no mercado. A Alemanha foi fonte de engenhosas soluções e comprovou a imaginação concebendo carros pequenos, simples e baratos como os Lloyd e os Goggomobil. O Champion pretendia competir com eles e até tem a linha de um automóvel de categoria superior». (Christian Manz - Motor Clássico nº141,edição espanhola,1999).
O motor do meu Champion é um ILO, de dois cilindros, a dois tempos, com uma cilindrada de 398 c.c.. Tem um trabalhar engraçadíssimo e tão peculiar que, não raras vezes, os meus pais o gravavam, em fita magnética, fazendo disso algum humor. Tem três velocidades e marcha atrás. As rodas são grandes e têm pneus 4,23x15. O «chassis» é muito simples apenas com um tubo central e com duas travessas que suportam a plataforma na qual assenta a carroçaria.

O mais interessante é que, pelo que sei, existem muito poucos exemplares destes carros registados.Teriam sido fabricadas quatro unidades de pré-série e mil e novecentas de série. Entre Fevereiro de 1951 e Maio de 1953, penso que teriam vindo para Portugal à volta de cinquenta exemplares. Em 1955 a produção dos Champions foi totalmente assumida pela Maico, fabricante de motocicletas. Segundo a revista alemã Oldtimer Markt, há alguns anos atrás ainda existiam na Alemanha 6 Champions registados.

Talvez por tudo isto, por ele ser raro e engraçado, ao longo da sua vida foi merecendo alguns “piropos” e, ainda hoje, ninguém fica indiferente a esta “máquina” que mais parece um carrinho de brincar. O último “mimo”, mais significativo, aconteceu em Vila Franca de Xira, em Junho de 2007: entre cerca de quarenta clássicos, numa mostra de carros antigos, integrada no dia da cidade, o meu Champion foi galardoado com o prémio de “automóvel mais antigo”.

Assim se vai fazendo a história de um automóvel: homenagiando o passado e fazendo-nos divertir no presente. Para o futuro, por mim, fica o desejo de que o Champion, “património cultural das Marias” continue a acrescentar valores familiares e tenha, se possível, um fim condigno.

Maria Natalina Correia Silva (...uma das “Marias” – filha, mãe e avó)